terça-feira, 16 de outubro de 2012

A Dualidade Cristã


"Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem."
Romanos 7:18


O capítulo sete do livro de Romanos é com certeza um dos capítulos mais fantásticos e importantes de toda a Bíblia. De fato, o livro de Romanos é apontado por muitos teólogos como o livro mais importante de todas as Escrituras Sagradas, visto que é nele que o Apóstolo Paulo condensa e sistematiza toda a doutrina Cristã. Capítulo por capítulo ele avança, inexoravelmente, apresentando e dispondo argumentos com uma lucidez e precisão raras vezes vista na história. 

Os quatro primeiros capítulos servem grosso modo para provar a culpabilidade de toda a humanidade (inclusive os Judeus) perante Deus. Tendo fornecido lógica e abundância de Escrituras do Antigo Testamento para calar tanto gentios como Judeus, ele avança e no final do quinto capítulo começa com a estupenda declaração: "Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo." Ele destrói a confiança dos gentios na sua moral, e a dos judeus na lei, argumentando que a Lei não veio para salvar - mas sim para mostrar, para tornar manifestos os pecados dos homens. No capítulo seis ele antecipa alguns erros, inclusive a pergunta: "Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde?" Volta então e diz que aquele que é um cristão genuíno crucificou seu antigo eu com Cristo na cruz, estamos "mortos para o pecado" para que não "sirvamos mais ao pecado". 

Agora chegamos ao ponto que eu desejo destacar com este breve texto. E ele é o seguinte; toda a argumentação disposta no capítulo seis, em especial o versículo dois: "Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?" poderia levar (e de fato o fez) a um erro fatal: O erro de pensar que uma vez que somos cristãos, nunca mais pecaremos. Ora, poucos cristãos diriam o contrário com os lábios, mas muitos abrigam essa idéia no coração. Muitos sabem de cor essa verdade tão antiga e clichê, tão óbvia que não precisa ser lembrada, tão clara que não precisa ser explicada. 

C. S. Lewis certa vez disse que os grandes mestres morais não ensinaram nada novo, mas apenas reiteraram antigas verdades. De semelhante maneira Chesterton disse que as palavras difíceis não são as complicadas, aquelas usadas por filósofos e que possuem 30 letras, mas sim as palavras curtas e inescapáveis; "Há muito mais sutileza metafísica na palavra 'condenar' do que na palavra 'degeneração'". O que se segue é uma verdade bastante interessante. Chamamos de "clichê" aquelas verdades incômodas, aquelas verdades que são óbvias, mas que ninguém segue. Quando uma pessoa comum diz: "Você deve seguir seus sonhos," consideramos essa verdade - quando saída da boca de uma pessoa comum - como sendo "clichê," mas a consideramos de maneira diferente quando alguém como, digamos, Steve Jobs, o deus moderno, diz algo assim. Porque? A resposta é óbvia. Porque ele de fato fez isso. Ele não apenas disse, mas fez. Não apenas defendeu, mas fez. O meu propósito aqui não é defender as questionáveis motivações desse homem, mas destacar uma verdade. E apenas uma. Nós temos a tendência de falar coisas da boca pra fora, temos a tendência, seja por osmose, seja por preguiça, seja por falta de caráter, por falta de personalidade própria, seja pelo que for, nós temos a tendência de dizer coisas que não sentimos e não seguimos. Essa é a tendência geral da humanidade. Essa é minha tendência, essa é sua tendência. E isso não muda (completamente) quando nos tornamos cristãos. 

Permita-me explicar melhor. Existem algumas verdades da fé Cristã que todos conhecem. Todos sabem por exemplo que Deus é amor. Mas existe uma diferença infinita entre "saber" no sentido de apreender o fato intelectualmente, isto é, de ser capaz de ligar os pontos, e na sua mente conceber a idéia de que Deus é amor, e realmente "saber" que Deus é amor no sentido de experiência pessoal, uma apreensão não apenas intelectual, mas empírica, quando você sente a verdade. Da mesma maneira que todos sabem que as mães amam seus filhos, mas você sabe, como mais ninguém, que a sua mãe de fato o ama. Novamente, não entro no mérito de definir o amor de Deus, não é esse meu propósito, e se o fosse levaria mais alguns anos vivendo e aprendendo antes de escrever algo assim. 

O ponto é; nós realmente sabemos que como cristãos vamos inevitavelmente pecar até o resto de nossas vidas? Nós sabemos disso? Acreditamos realmente nisso? Encaramos isso? "O maior teste de fé," diz Paul Washer, "não é ressuscitar os mortos ou cortar o mar vermelho, mas sim olhar no espelho da Palavra de Deus, olhar para nossas falhas, para nossos pecados, olhar para quem realmente somos, e ainda assim, acreditar que Ele nos ama como diz que ama." Ora, essa é uma verdade maravilhosa.! Cristo não veio salvar pessoas boas, Ele não veio "melhorar" as partes de você que já são "boas," Ele não está procurando pessoas morais, ou pessoas "respeitáveis," Ele não se importa se a sua família te respeita, se o seu chefe te respeita, se todos olham para você como um exemplo de moral e ética... Ele te conhece. Ele veio salvar aquela parte mais íntima, aquela parte da qual você foge, aqueles instintos reprimidos, escondidos... aquele egoísmo, aquela avareza que você tanto luta pra controlar... Aqueles instintos deturpados, desnivelados, aqueles pensamentos que são escondidos com tanta força, até de você mesmo. Ele te conhece. O Cristão é aquele que sabe que no fundo é como as feras, que toda a sociedade é um teatro de bestas, e que como Oscar Wilde disse, "A sinceridade total seria fatal." O Cristão é aquele que encara de frente o quadro do horror, como Dorian Gray encarou sua alma dentro daquela moldura magnífica, que encara fixamente seu interior, e aceita isto. Ele aceita que aquilo existe.

"Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum.." Essa frase não foi escrita por um político corrupto ou um traficante de drogas, ela não foi escrita por algum mercenário engravatado ou um estuprador. Não, ela foi escrita por um dos maiores santos de todos os tempos, o homem que tinha autoridade suficiente para dizer aos cristãos que o imitassem, assim como ele imitava Cristo. Mas esse mesmo santo foi o homem que ajudou a prender e matar vários Cristãos, o homem que estava presente quando o primeiro mártir, Estevão, foi morto, era zeloso na perseguição dos Cristãos, fariseu de nascimento, aparentemente o pior inimigo da fé Cristã. É esse o homem que escreve e relata essa dualidade, é esse o homem que diz o bem está nele, que ele quer fazer o bem, quer constantemente ser bom, não deseja errar, mas constante e invariavelmente erra. Existe outra lei que o arrasta, outra vontade que continua a assaltá-lo. E essa é uma batalha que continuaria, até o dia da morte, até o dia do "lucro". 

Diante disso, o que dizer? "Ó miserável homem que sou!" Mas ele não para aí, ele continua e nos dá o capítulo oito de Romanos, provavelmente um dos capítulos mais reconfortantes de toda a Bíblia. O "otimismo" Cristão é diferente, completamente diferente. "[Ele] está baseado no fato de que não nos encaixamos no mundo. Eu tinha tentado ser feliz ao continuar dizendo para mim mesmo que o homem é apenas mais um animal buscando seu sustento de Deus. Mas agora eu estava realmente feliz, pois eu havia aprendido que o homem é uma monstruosidade," diz Chesterton. Talvez você considere isso mórbido, talvez considere isso pessimista demais, um quadro negro demais. Mas leia atentamente o que C. S. Lewis diz: "A via cristã é diferente: é mais fácil e mais difícil. Cristo diz: "Quero tudo que é seu. Não quero uma parte do seu tempo, uma parte do seu dinheiro e uma parte do seu trabalho: quero você. Não vim para atormentar seu ser natural, vim para matá-lo. As meias-medidas não me bastam. Não quero cortar um ramo aqui e outro ali: quero abater a árvore inteira. Não quero raspar, revestir ou obturar o dente: quero arrancá-lo. Entregue-me todo o seu ser natural, não só os desejos que lhe parecem maus, mas também os que se afiguram inocentes - o aparato inteiro. Em lugar dele, dar-lhe-ei um ser novo. Na verdade, dar-lhe-ei a mim mesmo: o que é meu se tornará seu."

O cristão sabe que todo nosso ser é corrompido, mas também sabe que todo nosso ser é remido. Toda a existência está fundada sobre este paradoxo; que sem a desonra não existiria a honra, sem a infidelidade não existiria a fidelidade, sem o ódio não saberíamos o que é o amor. Existe um fato que nunca deve ser esquecido, e ele é este: O que constitui um Cristão não é a perfeição, mas a vontade de ser perfeito. Não são nossas obras que nos salvam, é a obra de Cristo. Não é nosso amor por Ele que nos mantém, mas sim o inverso. Nossa garantia está Naquele que nunca pecou, nunca titubeou, nunca falhou. Nossa esperança está na Rocha Eterna, imutável e Eterna. Essa é nossa glória e nossa esperança.


Soli Deo Gloria

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