segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Coisa de filme

Estou escrevendo esse texto de madrugada, horário que raramente estou de pé. São Paulo está dormindo, mas seu sono não é tranquilo. Quase posso sentir a tensão, é algo que se espalha no ar, que nos segue em todos os cômodos, se infiltra em todos os pensamentos, retira a concentração, torna o sorriso difícil, o sono pesado. São Paulo dorme com um olho aberto.

A violência já é íntima dos paulistanos, conhecida de longa data, que entra na casa de muitos sem bater na porta e se instala na televisão, na internet, e até mesmo no rádio. Conhecemos bem a violência; convivemos com ela, crescemos com ela. Quem já não enfrentou ou pelo menos presenciou um assalto? Se escapamos de ver a violência ao vivo os meios de comunicação rapidamente se encarregam de corrigir isso. Então temos verdadeiros fanfarrões / imbecis como o Datena fazendo sucesso na televisão, um tipo de Sônia Abrão do crime, com um sensacionalismo e falso moralismo que chegam a embrulhar o estômago. Claro que a mídia tem seu papel, que é transmitir fatos, e a violência infelizmente permanece um fato fixo, mas a falsidade e sensacionalismo desses programas é de dar nojo, literalmente. São abutres, parasitas que sobrevivem (e muito bem) discorrendo sobre a desgraça alheia, na maioria das vezes, de pessoas extremamente pobres e suscetíveis ao engano, pessoas que dão entrevistas e são "obrigadas" a narrar detalhe por detalhe seu sofrimento, para que o povo em casa possa alimentar sua ânsia por desgraças e tragédias.

Um poeta certa vez disse que a casa de um homem é seu castelo, sua fortaleza. Agora mais do que nunca gostaria que a simples retórica se tornasse literal, gostaria que a minha casa fosse realmente uma fortaleza. Mas ela não é. Ela é uma casa comum, e lá fora existem homens que "correm para derramar sangue inocente," como relatou Isaías tanto tempo atrás.

Nesse ínterim as línguas não descansam, e variadas explicações são dadas. Das mais simplistas (todos os policiais executados eram corruptos e tinham ligação com o tráfico), até algumas mais elaboradas (o PCC na verdade cobra dívidas não pagas na forma de execuções de policiais), mas não importando qual seja a explicação dada, um fato terrível e solene permanece. O Primeiro Comando da Capital exerce um poder terrível, e mesmo se esse poder for em grande parte apenas um exagero da mídia (o que não parece de maneira alguma ser o caso) ele ainda permanece um poder terrível em nossas mentes e corações. O poder ideológico desse grupo é enorme. De acordo com uma reportagem da Folha de São Paulo o início do grupo se deu no dia 31 de agosto de 1993, a partir da reunião de 8 presos que tinham como objetivos principais "combater a opressão dentro do sistema prisional paulista" e também "vingar a morte dos 111 presos" que perderam a vida no famoso episódio do massacre do Carandiru. O antropólogo Adalton Marques nos dá uma visão geral da ideologia do grupo:

"Entendo que o papel do PCC, nos dias de hoje, está intimamente ligado à manutenção do que compreendem por "Paz", "Justiça", "Liberdade" e "Igualdade." As forças despendidas para assegurar esses valores passam pela efetuação de duas políticas centrais. A primeira consiste em esforços para estabelecer a "paz entre os ladrões", a "união do crime", acabar com a matança que tinha lugar no "mundo do crime", fazer com que os "ladrões" sejam "de igual". A segunda se divide em duas frentes: 1) "bater de frente com os polícia"- categoria que abarca policiais, agentes prisionais, diretores e outros operadores do Estado - a fim de protestar contra a situação imposta aos presos, considerada "injusta" por eles; 2) "quebrar cadeia", manter ativa a "disposição"("apetite") para fugir, enfim, cultivar a vontade de "liberdade."

Aposto que ao ouvir a palavra PCC poucos imaginariam que seu lema é "Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade." Mas esse disparate serve para ilustrar um ponto muito importante. O irônico de toda a situação é que de fato esses princípios são aplicados, mas são aplicados à apenas uma parcela da população, aplicados à uma classe específica em detrimento do resto da sociedade - e quando isto acontece - todo seu significado se perde e a virtude se torna o pior vício. Os deuses gregos quando isolados se tornavam demônios, o mesmo se dá com as virtudes. É sobremaneira fantástico observar como um grupo deste pode ter tal lema. Vários jornais há algumas semanas publicaram a notícia de que uma lista com 40 nomes - e um nível de detalhamento assombroso - foi encontrada durante uma operação na favela de Paraisópolis. Essa lista negra continha informações sobre os alvos do grupo, - todos policiais. Para cada "irmão" morto, dois policiais devem morrer. "O motivo da ordem seriam as 'execuções covardes' de criminosos supostamente cometidas por policiais militares," diz-nos o Estadão.

E no meio de tudo isso a população tentando viver sua vida.

Coisa de filme não? Ver um grupo rebelde tão bem organizado e estruturado, um governo corrupto, decadente e impotente, uma população alheia à tudo, um caos completo. Não precisamos dos problemas mundiais para ocupar nossas mentes no momento, o mais assustador está no nosso quintal.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O provável começo de uma história, ou não.

É senso comum que coisas extraordinárias acontecem em locais extraordinários. É no País das Maravilhas que a Alice encontra um coelho branco falante e um gato que flutua e desaparece. É na Terra de Oz que Dorothy faz amizade com um espantalho sem cérebro, um homem de lata sem coração e um leão covarde. O extraordinário chama o extraordinário, em uma terra mágica tudo é mágico. Mas aqueles com um pouquinho mais de bom senso sabem que o bom senso nem sempre é bom, e muito menos que está certo. Nossa história começa em um lugar comum, talvez até comum demais, com pessoas comuns, até comuns demais.

Pedro era um rapaz de 14 anos, e estava na fase que os psicólogos gostam de chamar de "pré-adolescência;" essa fase de mudanças em que de um minuto para o outro sua voz afina e desafina e odores um tanto desagradáveis surgem abaixo de seus braços, também conhecida como axila. Pedro não tinha vivido nada de excepcional até então, sua vida se resumia em ir à a escola, voltar da escola, e então ficar no seu quarto lendo, ou desenhando, ou ainda imaginando terras estranhas com criaturas estranhas, uma vez que era muito mais fácil lidar com elas do que lidar com as criaturas ainda mais estranhas que povoavam sua casa. Sua família tinha quatro membros, contando com ele mesmo. Eram eles seu pai; Armando, sua mãe; Vívian, e sua irmã mais nova, Clarice. Seus pais eram tudo aquilo que pode ser considerado como típico. Armando era um homem de mais ou menos cinquenta anos, rechonchudo, com o rosto rosado que mostra uma predileção por um bom churrasco, e uma barriga que mostrava afinidade com cerveja. Suas feições alegres se tornavam ainda mais prosaicas com o extenso bigode que cobria todo seu lábio superior e ainda se aventurava a desbravar as distantes terras do lábio inferior. Era calvo e estava sempre com um suspensório, marca registrada que ele considerava respeitosa. Vívian, sua mãe, era a dona de casa perfeita. Estava sempre com um coque, hábito que outras pessoas consideravam como uma marca distinta de sua eminente praticidade,  e ao contrário de seu marido era esguia, tendo um pescoço largo e uma postura impecável. Tinha marcas de expressão que mostravam constante preocupação com os filhos e a família, e era uma excelente cozinheira, como os vizinhos e parentes estavam sempre lembrando em cada visita feita. Já a Clarice representava o modelo de irmã mais nova mandona. Era três anos mais nova do que Pedro, e agia como se fosse dez anos mais velha do que sua própria mãe; característica que irritava Pedro profundamente. Opinava em tudo, desde a cor da nova cortina da cozinha até o parcelamento da hipoteca da casa, e fazia tudo isso com tal segurança que era fácil esquecer que tinha apenas 11 anos. Era alta e esguia como a mãe, e tinha ares de aristocrata. Os três juntos formavam uma família que não era má para Pedro, o problema não era falta de atenção, mas sim falta de compreensão.

Mas não era apenas a família de Pedro que sofria com a doença da falta de compreensão, mas sim, - ao que parecia - o mundo inteiro. Desde muito novo algo incomodava Pedro, algo que ele não sabia definir, algo que não estava na superfície de seus pensamentos e sentimentos, mas estava sempre lá, no fundo, guiando cada decisão, influenciando cada passo. Escondido entre os cantos do cotidiano, um desejo fortíssimo estava vivo. Talvez você já tenha sentido isto e possa entender Pedro um pouco melhor. É um sentimento que toma conta de você em algum momento específico, e que pode ser "ativado" (essa é a palavra que ele sempre usava) por diferentes coisas; para alguns pode ser uma música, uma pintura, ou deitar na grama. Para outros pode ser um filme, o sorriso de alguém, ou segurar a mão daquela pessoa especial. É um sentimento difícil de definir exatamente, mas que poderia ser descrito como uma vontade de ser completo. Esse sentimento vinha até Pedro através da leitura, dos desenhos, e de suas próprias divagações mentais (que eram constantes).

Acho que nesse ponto seria interessante falar mais um pouquinho do herói de nossa história; Pedro. Enquanto sua família era prática, e seus pais não tinham tempo para besteiras como por exemplo uma vontade de ser completo, mas sim com coisas mais concretas como qual faculdade e pós-graduação Pedro iria fazer, ou como ele iria conseguir entrar no curso de Direito, ou Medicina e finalmente poder ter uma vida "bem-sucedida," Pedro era talvez avoado demais. Alguns diriam preguiçoso, mas não acho que fosse esse o caso. Ele não parecia se preocupar tanto com seu futuro, mas tinha uma estranha tendência de dar muita importância para o presente. Estava quase que constantemente focado, só que seu foco não parecia ser nada nesse mundo. Era um rapaz magro, com uma cabeleira negra e olhos lânguidos. Sua expressão mostrava uma inteligência quase displicente, e sua postura corporal revelava o hábito de alguém que passa muito tempo curvado lendo (ou desenhando). Apesar desse quadro inicial, imaginar que ele era alguém melancólico, ou um rapaz isolado ou alvo de constante bullying é bem falso. Não tinha realmente problemas em se comportar, mas tinha sérios problemas em realmente ficar íntimo de alguém, e isso às vezes o incomodava, mas para ser bem sincero com vocês, não tanto quanto imaginam. Considerava-se alguém de caráter nobre, uma vez que nunca tinha feito nada de "realmente" errado, como xingar sua mãe ou roubar um banco. Por toda sua infância ele sempre sentira que tinha algo de "estranho," ou pelo menos diferente. Tinha pavor quando pensava em si mesmo com um terno e uma pasta debaixo do braço em um grande escritório, e não sabia realmente porque. Sentia-se por vezes sufocado por tudo que o rodeava, e imaginava que deveria existir algo mais além de tudo isso. Mas era apenas uma criança, como seus pais constantemente diziam; "E quando amadurecer e tiver que trabalhar e estudar tudo isso será esquecido." Bem, pelo menos até agora o que estava acontecendo era o exato inverso. Na medida em que ele crescia e amadurecia, o sentimento também crescia e amadurecia. A complexidade que sua personalidade adquiria servia apenas para aumentar a complexidade do sentimento em si. Era parte dele, e não seria de maneira alguma erradicado com simples educação ou "amadurecimento." Disso ele estava certo. Quanto mais ele conhecia o mundo e à si mesmo, mais ele julgava e enxergava ambos à luz desse sentimento. Como o sol, Pedro não conseguia olhar diretamente pra ele, mas através da sua luz podia enxergar todo o resto. Sendo assim, no ponto em que nossa história começa, Pedro era um rapaz comum com um sentimento deveras incomum.

Revisão do texto: Victor Martins de Souza

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Os deuses-guia do Brasil

E quando a corrupção dos políticos atingir seu auge, quando a violência se tornar companheira íntima de todos os cidadãos, quando a ética e a moral forem completamente jogadas de lado, e Deus for considerado uma ilusão de mentes primitivas.. que o futebol e Neymar possam continuar a ser os faróis que guiam nossa nação.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Sobre a Mitologia dos Cientistas - G. K. Chesterton




O que eu me aventuro a criticar em certos homens, os quais são chamados de cientistas por alguns e de materialistas por mim, é o seu uso perpétuo da Mitologia. Uma metade do que eles dizem é tão verdade que chega a ser banal; a outra metade é tão inverdade que chega a ser transparente. Mas eles cobrem ambas suas banalidades e pretensões através de um elaborado desfile de imagens alegóricas e lendárias. Eu li isto em um comentário sobre Darwinismo de um dos últimos Darwinianos sobreviventes: 'Entre os indivíduos de todas as espécies acontece, como Malthus havia percebido, uma competição ou luta pela vida, e a Natureza seleciona os indivíduos que variam na direção mais bem-sucedida.' Agora, quando os homens das religiões antigas disseram que Deus escolhera um povo ou levantara um profeta, pelo menos eles queriam dizer algo com isso; e eles queriam realmente dizer o que disseram. Eles quiseram dizer que um ser como uma mente e vontade usou tais faculdades em uma ação de seleção. Mas quem é a Natureza, e como ela, ou ele, ou isso, é capaz de selecionar qualquer coisa? Tudo que o escritor realmente tem a dizer é que alguns indivíduos de fato sobrevivem enquanto outros são extintos. Dificilmente precisaríamos de Darwin ou Darwinianos para nos dizer isso. Mas a Natureza escolher aqueles que variam na direção mais bem-sucedida não significa nada em absoluto, exceto que os bem-sucedidos foram bem-sucedidos. Mas esse truísmo tautológico é envolvido em nuvens de mitologia, pela introdução de um ser mítico que até mesmo o escritor considera como um mito. O leitor deve ser impressionado e iludido pela visão de uma vasta deusa de pedra sentada em um trono sobre uma montanha, e apontando para um sapo ou coelho e dizendo, com voz de trovão, que apenas este deve sobreviver. Tudo que sabemos é que ele de fato sobrevive (pelo momento), e então nos orgulhamos da capacidade de repetir o simples fato de que ele sobrevive em cinquenta expressões variadas e floridas; ou que foi naturalmente selecionada para a sobrevivência; ou que ele sobrevive pois é o mais adequado para a sobrevivência; ou que a grande lei dos mais fortes da Natureza severamente o ordena a sobreviver. Os críticos da religião costumavam dizer que os mistérios da mesma eram pantominas; mas estas coisas são de fato pantominas em um sentido muito especial e real. Elas são coisas oferecidas à congregação crédula por sacerdotes que sabem que elas são pantominas. É impossível provar que os sacerdotes sabem que não existe um deus no santuário, ou verdade no oráculo. Mas nós sabemos que os materialistas sabem que não existe tal coisa como uma larga e fastidiosa dama, chamada Natureza, que aponta o dedo para um sapo.

O caso particular no qual essa metáfora mitológica foi usada é claramente outro assunto. Ele é, de fato, um assunto que tem envolvido em várias ocasiões uma grande parte desse elemento da mitologia materialista. Para enxergar qual verdade ele realmente embarca precisaríamos voltar ao antigo debate Darwiniano; coisa que eu não tenho a mínima intenção de fazer aqui. Mas eu posso observar, de passagem, que essa noção da Natureza selecionando coisas é especialmente incompatível com tudo que pode realmente ser dito em seu próprio favor; e que o próprio nome da seleção natural é um nome extremamente anti-natural para todo o processo. Pois a base de tudo que eles defendem é que tudo aconteceu, no sentido ordinário e humano, por acidente. Nós deveríamos antes chamar de coincidência; e alguns de nós chamam de uma deveras incrível coincidência. Mas, de qualquer maneira, o caso é que um quadrúpede calhou de ter um pescoço mais longo, e viveu em um momento onde era necessário alcançar uma árvore mais alta. Se esses acontecimentos calham de acontecer cem vezes em sucessão, exatamente da mesma maneira, você pode através desse processo transformar algum tipo de ovelha em uma girafa. Se isto é provável ou não é outra questão. Mas toda a questão Darwiniana, e de fato o argumento Darwiniano é que este não é um caso de seleção Natural assim como não é de seleção Divina, ou seleção de qualquer outra coisa, mas sim um caso onde as coisas simplesmente aconteceram dessa maneira. Nós estamos de fato prontos a discutir árvores e girafas em seu lugar devido, sem referências perpétuas a Deus. Será que os materialistas não poderiam controlar seu sentimentalismo romântico e retórico para que também pudessem falar dessas coisas sem referências perpétuas à Natureza? Façamos uma barganha: deixemos nossa teologia por um momento se eles deixarem sua mitologia?

Mas o hábito mitológico não está inteiramente e exclusivamente confiando aos homens da ciência, ou até mesmo aos materialistas. Esse tipo de mitologia está antes disseminado sobre todo o mundo moderno. A forma popular do mitológico é o metafórico. Certas figuras de linguagem estão fixas na mente moderna, exatamente como as fábulas dos deuses e das ninfas estavam fixas na mente da antiguidade pagã. É surpreendente observar quão frequentemente, quando abordamos um homem com qualquer coisa que se assemelhe à uma idéia, ele responde com alguma metáfora reconhecida que deveria ser apropriada ao caso. Se você lhe diz, 'Eu prefiro o princípio do Grêmio ao princípio da Confiança,' ele não irá responder falando sobre princípios. Ele pode dizer, 'Você não pode voltar o relógio.' com toda a regularidade de um relógio. Este é um exemplo deveras extremo do colapso mental que recai em metáforas. Pois o homem está de fato subestimando seu próprio argumento por puro amor à metáfora. Pode ser impossível voltar no tempo, mas não é impossível fazer o relógio voltar no tempo. Ele estaria em uma posição melhor se falasse sobre a abstração chamada tempo; mas um apetite devorador por linguagem figurativa o força a falar sobre relógios. É claro, a questão real não tem nada a ver com relógios ou tempo. É a questão se certos princípios abstratos, os quais podem ou não ter sido observados no passado, deveriam ser observados no futuro. Mas o ponto é que aqui até mesmo o homem que diz que não podemos reconstruir o passado pode dificilmente reconstruir sua própria sentença em qualquer outra forma exceto essa forma figurativa. Sem seu mito, ou sua metáfora, ele está perdido. 

Outra massa de metáforas é vista no fenômeno da manhã, ou o fato de que o sol nasce; ou, então (eu rastejo em desculpas aos homens da ciência), que parece nascer. É uma metáfora perfeitamente natural para poetas; ou, de fato, para todos os homens, naquele aspecto em que todos os homens são místicos. Que existe um mistério nessas coisas naturais, que a imaginação entende mais sutilmente que a razão, é bem verdade. Nem possuo também qualquer contentamento mesmo com a mitologia sendo considerada como mitologia. Mas quando queremos saber o que alguém quer fazer, quando perguntamos à um pensador-livre o que ele pensa, e porque ele pensa dessa maneira, é um pouco cansativo ouvir que ele está esperando pelo Amanhecer, ou ocupado no momento cantando canções antes do Sol Nascer. Alguém pode se sentir tentado a replicar que o amanhecer não é sempre uma coisa alegre, até mesmo para aqueles que exercitaram seu pensamento livre sobre as tradições convencionais de sua própria sociedade. Existe algo como ser baleado no Amanhecer. 

Eu não quero dizer nem mesmo por um momento que deveríamos parar com as metáforas e os mitos em absoluto. Eu constantemente as uso, e continuarei a fazê-lo. Mas eu penso que deveríamos ficar em guarda quanto a usá-las como substitutos para a razão. Talvez seria interessante termos um Dia de Jejum, no qual empreenderemos uma abstinência de termos abstratos. Concordemos que toda sexta feira devemos ficar sem metáforas como ficamos sem carne. Eu tenho certeza que seria bom para a digestão intelectual. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Uma defesa da Hombridade

Em 1901 G. K. Chesterton, o grande autor Britânico, amplamente esquecido em nossos dias, todavia conhecido de todos aqueles que me conhecem (através de um processo de citações compulsivas que me assola) escreveu uma série de ensaios onde defendeu vários temas "controversos" sempre com seu estilo único e incisivo. Essa série de ensaios foi mais tarde compilada em um livro chamado "The Defendant," (em português, "O Defensor.") Trago esse fato à lembrança para que ninguém me acuse de plágio. Antes que alguém faça isso, eu mesmo o farei com todo orgulho.

Esses ensaios foram escritos pois Chesterton acreditava que alguns assuntos haviam sido esquecidos e outros deturpados a tal ponto, que uma "defesa" dos mesmos se fez necessária. Cingiu então os lombos e fez o que sabia fazer de melhor, escrever.

Todas as épocas possuem suas forças e fraquezas, e mais importante, todas as épocas possuem tópicos que precisam ser reiterados, fatos esquecidos e verdades deturpadas, pois, segundo Lutero observou de maneira muito coerente, a humanidade se assemelha à um beberrão andando de cavalo, sempre caindo ou para a direita ou para a esquerda, sempre abraçando extremos e esquecendo-se do equilíbrio. Nossa época em particular, quando falamos do Ocidente, é uma época complicada. Somos a época da tirania do "politicamente correto" como diria Felipe Pondé, onde a verdade é sacrificada no altar do bem-estar e auto-estima, tanto nas áreas seculares quanto - infelizmente e tristemente - nas Igrejas; somos a cria das filosofias pós-modernistas, que relativizaram a moral, e que gritam junto com Nietzsche "Deus está morto," somos o que sobrou da moral Cristã trazida pelos evangelistas misturada com as idéias filosóficas e culturais, um caldeirão de idéias onde o que vale é aquilo que te faz "feliz," aquilo que te faz sentir "completo," e onde os direitos são mais defendidos do que nunca e os deveres jogados para escanteio. O resultado é uma geração de cegos que não enxergam os deveres no céu nem os direitos na terra.

Neste texto tomo a sobremaneira prepotente tarefa de defender algo que foi desesperadamente esquecido em nossa época. Mas essa tarefa se torna ainda mais difícil porque esse esquecimento não se deu de maneira completa, mas antes, ele aconteceu através de uma mistura de idéias, onde a definição do termo se perdeu entre mil definições diferentes. Antes de defender o termo em si, gostaria de defender outro fato.

Nossa existência sempre foi definida em termos de absolutos, herança essa oriunda do Cristianismo. As idéias de honra, coragem e virilidade tão vigorosamente defendidas por Nietzsche foram igualmente defendidas pelo Cristianismo, com a diferença de que o mesmo as manteve em seu devido lugar, e não as elevou acima de todas as outras. Cristo foi o mais viril dos homens, enfrentou a cruz sem pestanejar, enquanto Nietzsche morreu insano e ironicamente obcecado por certos versículos da Bíblia. O meu ponto é este: Existe um padrão de conduta que é intrinsecamente certo, correto, e justo. Rejeito qualquer conceito relativista que diz que alguns comportamentos são certos em uma época e não em outra, rejeito o conceito insano de que tudo que importa é nossa "felicidade," rejeito conceitos simplistas e ingênuos de que tudo que precisamos é "amor," segundo o profeta de nossa geração, o homem que cantou sobre um mundo sem posses enquanto vivia em uma mansão, John Lennon. Não. A realidade é mais complicada do que isso, o ser humano é mais complicado do que isso. O problema fundamental do ser humano é o próprio ser humano.

Acredito firmemente que existe um certo e errado definidos, fixos e eternos. E que venham as lanças e espadas e me julguem como herege entre a geração "onde o amor é declarado com a boca e o ódio é vivido de fato."

Agora volto ao meu ponto principal, não antes de esclarecer mais um ponto. Como você deve ter notado o título do texto é "Uma defesa da Hombridade." Pois bem, algo aqui precisa ser dito. Me sinto extremamente incapaz de até mesmo definir esse termo corretamente, muito menos de defendê-lo, mas aprendi que a vida ensina aqueles que estão dispostos a aprender, e isso é ainda muito mais claro no caso dos Cristãos. A minha atual incapacidade e limitação não devem me impedir de defender aquilo em que acredito. Estou aberto ao aprendizado, e espero poder atualizar este texto sempre que aprender algo e achar digno de ser posto aqui. Peço de antemão que perdoem meus erros e excessos, mas não peço perdão por defender aquilo que acredito, disso eu não posso me desculpar. Leia o texto com a consciência de que um jovem finito, inexperiente e acima de tudo pecador escreveu esse texto - sim - mas não negue as verdades encontradas aqui pois as mesmas são independentes de mim, são fixas, eternas, e mantidas por uma Palavra que não volta atrás.


Hombridade: Algumas Questões Preliminares


Descobri que a força de um texto não vem apenas de sua lucidez, qualidade argumentativa ou amplo conhecimento - não importando quão fundamentais essas características sejam - o texto é semelhante ao ser humano, o qual sem propósito ou paixão seria apenas uma máquina. Tal qual o propósito é na vida do ser humano o é na força de um texto, e este texto em especial possui um propósito muito poderoso. Todos temos a tendência de achar que alguns problemas só acontecem com as outras pessoas, e que jamais aconteceriam conosco ou com alguém próximo de nós. Também temos a tendência de apreender algumas verdades apenas intelectualmente, mas não de fato, até que aconteçam conosco. Pois bem, a mentira que é a primeira tendência se fez terrivelmente clara através do acontecimento da segunda tendência em minha vida. Meu pai agora enfrenta a época mais difícil de sua vida. Ele sempre foi um homem forte como um touro, tanto fisicamente quanto psicologicamente, sempre foi para mim uma fortaleza inexpugnável, refúgio seguro, alguém que sempre estaria de pé quando todo o mundo ruísse ao seu redor - em resumo - meu pai sempre foi a figura da Hombridade para mim. Todavia algo aconteceu, algo difícil de explicar e mais difícil ainda de ser visto e vivido por qualquer pessoa que tenha conhecido esse homem. 

Meu pai se encontra agora em um estado complicado, frágil, enfrentou lapsos de razão, devido à falta de sono e fraqueza física, o remorso por falhas passadas (sendo algumas dessas "aumentadas" pelo senso de responsabilidade oriunda da geração anterior e tão tristemente desprezado e esquecido na nossa) o paralisa no presente e cria fantasmas para o futuro. O homem que eu considerava invencível se encontra agora debilitado e tentando encontrar forças para reagir. A minha personalidade sem dúvidas é estranha, considero mais fácil encarar um problema se for capaz de colocá-lo em palavras, quase como se ele perdesse parte de seu poder ao ser colocado em um papel. Sinto como o controle sobre ele aumentasse à medida que sou capaz de analisá-lo e separar suas partes, entender como ele opera, e acima e além de tudo, compreender que ele também acontece com outras pessoas. A minha concepção do que é ser homem foi duramente atacada e posta à prova, pois o meu modelo máximo foi também atacado. Mas o aprendizado vem àqueles que estão dispostos à encontrá-lo e acima de tudo, aplicá-lo. Portanto eu possuo duas excelentes desculpas para escrever este texto, dois excelentes propósitos. A primeira é a minha necessidade de colocar em palavras o que sinto, colocar em palavras toda a situação, para que eu possa analisá-la friamente, e liberar meus sentimentos. A segunda razão é a defesa per se, a consciência de que o sentido de ser homem mudou radicalmente em nossa geração, e mudou para pior. 

O dicionário define "Hombridade" como "Aspecto Varonil, Corporatura, Nobreza de Cárater." Agora, todas essas palavras com certeza não soariam estranhas para os homens de duas gerações atrás, homens que com 21 anos de idade já tinham uma família para sustentar, e não tinham muito tempo para ócio e brincadeiras, muito menos video-game (se na época isso existisse).  Ser homem na época era algo muito sério e algo muito definido. Não existia tal coisa como bullying, ou uma lei que impede os pais de bater nos filhos. Disciplina era algo real e necessário, não uma expressão de tirania imposta pelos pais, como alguns psicólogos modernos parecem defender. Gordon Clark em seu "A Christian Philosophy of School" cita o autor John Dewey, que em 1922 já instilava a rebeldia da juventude contra os pais. Os pais têm "domesticado" a - segundo ele - "maravilhosa originalidade da criança." Agora, apenas uma coisa me vem à cabeça ao ler algo desse gênero. John Dewey nunca teve filhos, e se teve, quem cuidou deles foi apenas sua mulher. A irracionalidade de nossa época chegou ao ponto de dizer que a criança não deve ser reprimida em nenhum sentido, que todos os seus instintos e vontades são puros, porque não foram contaminados pela sociedade, essa entidade que parece ser a vilã de todos os problemas da humanidade. É claro que as crianças possuem muitas características fantásticas, mas elas não são perfeitas. Esses homens tão eruditos e cultos se perdem na vastidão de suas mentes e esquecem as verdades mais práticas e óbvias da vida. George Bernard Shaw em seu "Treatise on Parents and Children- What is a Child?" nos responde a pergunta "o que é uma criança?" Diz ele que a criança é "um experimento. Uma tentativa nova de produzir o homem justo tornado perfeito: isto é, de tornar a humanidade divina." Shaw acreditava na doutrina do super-homem pregada por Nietzsche, isto é, ele acreditava que a natureza através de processos cegos de tentativa iria um dia criar o homem divino. Quando enxergada sob esse ponto de vista é compreensível a conclusão à qual ele chega após: "E você irá viciar o experimento se fizer a mínima tentativa de abortá-lo em alguma fantasia própria: por exemplo, sua noção do que é um bom homem ou uma mulher feminina." Agora, o que é interessante nesse tipo de pensamento é que a perfeição nunca é definida por esses homens, eles nem mesmo arriscam. E eles estão dispostos a pregar que as crianças, criaturas ingênuas, indefesas  e pecadoras, não recebam qualquer tipo de recriminação ou disciplina, sob o pretexto de que talvez estejamos estragando uma criança que se tornaria um dia o homem divino.  Toda essa confusão nasce de uma confusão mais profunda e às vezes escondida. Esse tipo de pensamento é apenas a conclusão lógica do dogma humanista que diz que o ser humano é em sua essência bom, são apenas os outros seres humanos que o corrompem. Não vou me demorar nesse assunto, só gostaria que as pessoas que culpam a "sociedade," ao invés do indivíduo para tudo, me dissessem do que a sociedade é feita. E a resposta óbvia seria, "de vários indivíduos." O que torna esse argumento um tanto estranho, no mínimo.

Não, o ser humano não é bom em sua essência, ele é mal. Como Pascal disse, nós somos "deuses caídos," corrompidos em nossa própria essência. Novamente, não desejo me demorar nesse assunto, e meu foco não é defender essa doutrina. Meu foco é o seguinte; a falha em considerar o humano da maneira errada resulta na falha da criação, o que resulta na falha em criar homens justos, conscientes e honrosos. 

Mas o que seria um homem honroso? O que seria um homem justo? Seria ele perfeito como Bernard Shaw imaginava? Um produto da vontade cega da natureza? Será ele um produto de uma sociedade perfeita? O produto utópico de uma sociedade igualmente utópica? Pode a evolução criar ou muito menos explicar o que seria um "homem divino"? Daqui para frente defenderei o conceito de homem justo como mostrado na Bíblia contra alguns dos conceitos mais difundidos em nosso tempo. Hei de definir e defender essa definição, pois como Ravi Zacharia diz, "a verdade não é apenas uma questão de ofensiva, no sentido de fazer certas asserções. É também uma questão de defesa, no sentido de que ela deve ser capaz de fazer uma convincente e sensível resposta às objeções que são levantadas." A verdade é tanto positiva quanto negativa, positiva no sentido de definir o que é verdade, negativa no sentido de definir e defender o que não é verdade. Nos textos seguintes é isto que pretendo fazer.