quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O provável começo de uma história, ou não.

É senso comum que coisas extraordinárias acontecem em locais extraordinários. É no País das Maravilhas que a Alice encontra um coelho branco falante e um gato que flutua e desaparece. É na Terra de Oz que Dorothy faz amizade com um espantalho sem cérebro, um homem de lata sem coração e um leão covarde. O extraordinário chama o extraordinário, em uma terra mágica tudo é mágico. Mas aqueles com um pouquinho mais de bom senso sabem que o bom senso nem sempre é bom, e muito menos que está certo. Nossa história começa em um lugar comum, talvez até comum demais, com pessoas comuns, até comuns demais.

Pedro era um rapaz de 14 anos, e estava na fase que os psicólogos gostam de chamar de "pré-adolescência;" essa fase de mudanças em que de um minuto para o outro sua voz afina e desafina e odores um tanto desagradáveis surgem abaixo de seus braços, também conhecida como axila. Pedro não tinha vivido nada de excepcional até então, sua vida se resumia em ir à a escola, voltar da escola, e então ficar no seu quarto lendo, ou desenhando, ou ainda imaginando terras estranhas com criaturas estranhas, uma vez que era muito mais fácil lidar com elas do que lidar com as criaturas ainda mais estranhas que povoavam sua casa. Sua família tinha quatro membros, contando com ele mesmo. Eram eles seu pai; Armando, sua mãe; Vívian, e sua irmã mais nova, Clarice. Seus pais eram tudo aquilo que pode ser considerado como típico. Armando era um homem de mais ou menos cinquenta anos, rechonchudo, com o rosto rosado que mostra uma predileção por um bom churrasco, e uma barriga que mostrava afinidade com cerveja. Suas feições alegres se tornavam ainda mais prosaicas com o extenso bigode que cobria todo seu lábio superior e ainda se aventurava a desbravar as distantes terras do lábio inferior. Era calvo e estava sempre com um suspensório, marca registrada que ele considerava respeitosa. Vívian, sua mãe, era a dona de casa perfeita. Estava sempre com um coque, hábito que outras pessoas consideravam como uma marca distinta de sua eminente praticidade,  e ao contrário de seu marido era esguia, tendo um pescoço largo e uma postura impecável. Tinha marcas de expressão que mostravam constante preocupação com os filhos e a família, e era uma excelente cozinheira, como os vizinhos e parentes estavam sempre lembrando em cada visita feita. Já a Clarice representava o modelo de irmã mais nova mandona. Era três anos mais nova do que Pedro, e agia como se fosse dez anos mais velha do que sua própria mãe; característica que irritava Pedro profundamente. Opinava em tudo, desde a cor da nova cortina da cozinha até o parcelamento da hipoteca da casa, e fazia tudo isso com tal segurança que era fácil esquecer que tinha apenas 11 anos. Era alta e esguia como a mãe, e tinha ares de aristocrata. Os três juntos formavam uma família que não era má para Pedro, o problema não era falta de atenção, mas sim falta de compreensão.

Mas não era apenas a família de Pedro que sofria com a doença da falta de compreensão, mas sim, - ao que parecia - o mundo inteiro. Desde muito novo algo incomodava Pedro, algo que ele não sabia definir, algo que não estava na superfície de seus pensamentos e sentimentos, mas estava sempre lá, no fundo, guiando cada decisão, influenciando cada passo. Escondido entre os cantos do cotidiano, um desejo fortíssimo estava vivo. Talvez você já tenha sentido isto e possa entender Pedro um pouco melhor. É um sentimento que toma conta de você em algum momento específico, e que pode ser "ativado" (essa é a palavra que ele sempre usava) por diferentes coisas; para alguns pode ser uma música, uma pintura, ou deitar na grama. Para outros pode ser um filme, o sorriso de alguém, ou segurar a mão daquela pessoa especial. É um sentimento difícil de definir exatamente, mas que poderia ser descrito como uma vontade de ser completo. Esse sentimento vinha até Pedro através da leitura, dos desenhos, e de suas próprias divagações mentais (que eram constantes).

Acho que nesse ponto seria interessante falar mais um pouquinho do herói de nossa história; Pedro. Enquanto sua família era prática, e seus pais não tinham tempo para besteiras como por exemplo uma vontade de ser completo, mas sim com coisas mais concretas como qual faculdade e pós-graduação Pedro iria fazer, ou como ele iria conseguir entrar no curso de Direito, ou Medicina e finalmente poder ter uma vida "bem-sucedida," Pedro era talvez avoado demais. Alguns diriam preguiçoso, mas não acho que fosse esse o caso. Ele não parecia se preocupar tanto com seu futuro, mas tinha uma estranha tendência de dar muita importância para o presente. Estava quase que constantemente focado, só que seu foco não parecia ser nada nesse mundo. Era um rapaz magro, com uma cabeleira negra e olhos lânguidos. Sua expressão mostrava uma inteligência quase displicente, e sua postura corporal revelava o hábito de alguém que passa muito tempo curvado lendo (ou desenhando). Apesar desse quadro inicial, imaginar que ele era alguém melancólico, ou um rapaz isolado ou alvo de constante bullying é bem falso. Não tinha realmente problemas em se comportar, mas tinha sérios problemas em realmente ficar íntimo de alguém, e isso às vezes o incomodava, mas para ser bem sincero com vocês, não tanto quanto imaginam. Considerava-se alguém de caráter nobre, uma vez que nunca tinha feito nada de "realmente" errado, como xingar sua mãe ou roubar um banco. Por toda sua infância ele sempre sentira que tinha algo de "estranho," ou pelo menos diferente. Tinha pavor quando pensava em si mesmo com um terno e uma pasta debaixo do braço em um grande escritório, e não sabia realmente porque. Sentia-se por vezes sufocado por tudo que o rodeava, e imaginava que deveria existir algo mais além de tudo isso. Mas era apenas uma criança, como seus pais constantemente diziam; "E quando amadurecer e tiver que trabalhar e estudar tudo isso será esquecido." Bem, pelo menos até agora o que estava acontecendo era o exato inverso. Na medida em que ele crescia e amadurecia, o sentimento também crescia e amadurecia. A complexidade que sua personalidade adquiria servia apenas para aumentar a complexidade do sentimento em si. Era parte dele, e não seria de maneira alguma erradicado com simples educação ou "amadurecimento." Disso ele estava certo. Quanto mais ele conhecia o mundo e à si mesmo, mais ele julgava e enxergava ambos à luz desse sentimento. Como o sol, Pedro não conseguia olhar diretamente pra ele, mas através da sua luz podia enxergar todo o resto. Sendo assim, no ponto em que nossa história começa, Pedro era um rapaz comum com um sentimento deveras incomum.

Revisão do texto: Victor Martins de Souza

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