segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Coisa de filme

Estou escrevendo esse texto de madrugada, horário que raramente estou de pé. São Paulo está dormindo, mas seu sono não é tranquilo. Quase posso sentir a tensão, é algo que se espalha no ar, que nos segue em todos os cômodos, se infiltra em todos os pensamentos, retira a concentração, torna o sorriso difícil, o sono pesado. São Paulo dorme com um olho aberto.

A violência já é íntima dos paulistanos, conhecida de longa data, que entra na casa de muitos sem bater na porta e se instala na televisão, na internet, e até mesmo no rádio. Conhecemos bem a violência; convivemos com ela, crescemos com ela. Quem já não enfrentou ou pelo menos presenciou um assalto? Se escapamos de ver a violência ao vivo os meios de comunicação rapidamente se encarregam de corrigir isso. Então temos verdadeiros fanfarrões / imbecis como o Datena fazendo sucesso na televisão, um tipo de Sônia Abrão do crime, com um sensacionalismo e falso moralismo que chegam a embrulhar o estômago. Claro que a mídia tem seu papel, que é transmitir fatos, e a violência infelizmente permanece um fato fixo, mas a falsidade e sensacionalismo desses programas é de dar nojo, literalmente. São abutres, parasitas que sobrevivem (e muito bem) discorrendo sobre a desgraça alheia, na maioria das vezes, de pessoas extremamente pobres e suscetíveis ao engano, pessoas que dão entrevistas e são "obrigadas" a narrar detalhe por detalhe seu sofrimento, para que o povo em casa possa alimentar sua ânsia por desgraças e tragédias.

Um poeta certa vez disse que a casa de um homem é seu castelo, sua fortaleza. Agora mais do que nunca gostaria que a simples retórica se tornasse literal, gostaria que a minha casa fosse realmente uma fortaleza. Mas ela não é. Ela é uma casa comum, e lá fora existem homens que "correm para derramar sangue inocente," como relatou Isaías tanto tempo atrás.

Nesse ínterim as línguas não descansam, e variadas explicações são dadas. Das mais simplistas (todos os policiais executados eram corruptos e tinham ligação com o tráfico), até algumas mais elaboradas (o PCC na verdade cobra dívidas não pagas na forma de execuções de policiais), mas não importando qual seja a explicação dada, um fato terrível e solene permanece. O Primeiro Comando da Capital exerce um poder terrível, e mesmo se esse poder for em grande parte apenas um exagero da mídia (o que não parece de maneira alguma ser o caso) ele ainda permanece um poder terrível em nossas mentes e corações. O poder ideológico desse grupo é enorme. De acordo com uma reportagem da Folha de São Paulo o início do grupo se deu no dia 31 de agosto de 1993, a partir da reunião de 8 presos que tinham como objetivos principais "combater a opressão dentro do sistema prisional paulista" e também "vingar a morte dos 111 presos" que perderam a vida no famoso episódio do massacre do Carandiru. O antropólogo Adalton Marques nos dá uma visão geral da ideologia do grupo:

"Entendo que o papel do PCC, nos dias de hoje, está intimamente ligado à manutenção do que compreendem por "Paz", "Justiça", "Liberdade" e "Igualdade." As forças despendidas para assegurar esses valores passam pela efetuação de duas políticas centrais. A primeira consiste em esforços para estabelecer a "paz entre os ladrões", a "união do crime", acabar com a matança que tinha lugar no "mundo do crime", fazer com que os "ladrões" sejam "de igual". A segunda se divide em duas frentes: 1) "bater de frente com os polícia"- categoria que abarca policiais, agentes prisionais, diretores e outros operadores do Estado - a fim de protestar contra a situação imposta aos presos, considerada "injusta" por eles; 2) "quebrar cadeia", manter ativa a "disposição"("apetite") para fugir, enfim, cultivar a vontade de "liberdade."

Aposto que ao ouvir a palavra PCC poucos imaginariam que seu lema é "Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade." Mas esse disparate serve para ilustrar um ponto muito importante. O irônico de toda a situação é que de fato esses princípios são aplicados, mas são aplicados à apenas uma parcela da população, aplicados à uma classe específica em detrimento do resto da sociedade - e quando isto acontece - todo seu significado se perde e a virtude se torna o pior vício. Os deuses gregos quando isolados se tornavam demônios, o mesmo se dá com as virtudes. É sobremaneira fantástico observar como um grupo deste pode ter tal lema. Vários jornais há algumas semanas publicaram a notícia de que uma lista com 40 nomes - e um nível de detalhamento assombroso - foi encontrada durante uma operação na favela de Paraisópolis. Essa lista negra continha informações sobre os alvos do grupo, - todos policiais. Para cada "irmão" morto, dois policiais devem morrer. "O motivo da ordem seriam as 'execuções covardes' de criminosos supostamente cometidas por policiais militares," diz-nos o Estadão.

E no meio de tudo isso a população tentando viver sua vida.

Coisa de filme não? Ver um grupo rebelde tão bem organizado e estruturado, um governo corrupto, decadente e impotente, uma população alheia à tudo, um caos completo. Não precisamos dos problemas mundiais para ocupar nossas mentes no momento, o mais assustador está no nosso quintal.


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