quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Antigo Testamento Endossa a Escravidão? Uma Visão Geral (Tradução de Raul Martins Lima)



por Paul Copan


Se os Sulistas que acreditavam na Bíblia houvessem seguido a Lei de Israel a escravidão pré-Guerra não haveria existido ou não seria muito problema. 

Harrier Beecher Stowe (1811-96) é a famosa autora de Uncle Tom’s Cabin (Romance que tem como pano de fundo a relação entre os escravos norte-Americanos com os ricos proprietários Sulistas e que mostrou quão infame era a escravidão. N. do T.) Quando Abraham Lincoln a encontrou em sua visita à Casa Branca ele supostamente disse, “Então você é a pequena mulher que escreveu o livro que começou esta guerra!” Stowe descreveu a natureza da Escravidão pré-Guerra (Guerra Civil): “O poder legal do mestre resulta em um despotismo absoluto sobre corpo e alma,” e “não há proteção alguma pela vida do escravo.” [1]

Quando Cristãos e não-Cristãos lêem sbore a escravidão em Israel, eles frequentemente pensam nela como sendo igual à linha de escravidão definida por Stowe, com sua mercadoria de escravos e crueldade. Este é um terrível equívoco, e muitos - incluindo os Neo-Ateus - têm caído neste equívoco. Sam Harris escreve que escravos são seres humanos capazes de sentir sofrimento e felicidade. Ainda assim o Antigo Testamento os considera como “gado,” o que é “patentemente maligno.” [2]

Neste e em dois sucessivos artigos, eu tratarei do assunto da escravidão nas Escrituras. Nos dois primeiros artigos eu focarei na Escravidão no Antigo Testamento. O terceiro será reservado para escravidão no Novo Testamento. Para uma discussão mais detalhada, veja meu livro, Is God a Moral Monster? (Baker, January 2011).

Servidão Hebraica como Servidão Contratada

Nós devemos comparar a servidão dos dividendos Hebreus (muitas traduções apresentam isto como “escravidão”) mais apropriadamente como posições para se pagar dívidas - muito como a servidão durante a fundação da América quando pessoas trabalhavam por aproximadamente por 7 anos para pagar a dívida de suas passagens para o Mundo Novo. E então se tornavam livres. 

Na maioria dos casos, um servo era mais como um funcionário que residia junto com o patrão, incorporado temporariamente à casa de seu empregador. Até em nossos dias, times comerciam atletas à outro time que possui um dono, e estes atletas pertencem à uma franquia. Esta linguagem dificelmente sugere escravidão, mas antes um acordo contratual à ser cumprido - exatamente como no Antigo Testamento. [3]

Através de problemas com as colheitas e outros desastres, as dívidas tendiam a ser ligadas às famílias, não apenas aos indivíduos. Alguém poderia voluntariamente entrar em um acordo contratual (“vender” a si mesmo) afim de trabalhar na casa de terceiros, se “alguém do seu povo empobrecer e se vender” (Levítico 25:47). Uma esposa ou criança poderia ser “vendida” como ajuda ao sustento da família através de tempos insustentáveis - a menos que parentes os “remissem” (pagassem sua dívida). Eles seriam servos-dividendos por seis anos. [4] Uma família poderia ser obrigada a hipotecar suas terras até o ano do Jubileu a cada 50 anos. [5]
Nota: No Antigo Testamento, estrangeiros não impunham servidão - como na época da pré-Guerra Sulista.[6] Mestres podiam contratar servos “anualmente” e não deviam “dominar impiedosamente sobre eles”(Levítico 25:46,53). Ao invés de serem excluídos da sociedade Israelita, os servos eram inteiramentee incluídos nos lares Israelitas. 

O Antigo Testamento proíbia servidão vitalícia e inescapável - a menos que alguém amasse seu mestre e desejasse se ligar à ele (Êxodo 21:5). Mestres deveriam conceder aos seus servos perdão de todas as dívidas a cada sete anos (Levítico 25:35-43). O estado legal de um escravo era único no Antigo Oriente Médio - uma melhoria drástica nas leis daquele local: “O vocabulário Hebreu não possui nada relacionado à escravidão, apenas à servidão.” [7]

A liberação garantida de um servo Israelita dentro de cada 7 anos era um controle ou regulação afim de prevenir o abuso e institucionalização de tais posições. A liberação anual era um lembrete aos Israelitas de que servidão causada pela pobreza não era um arranjo social ideal. Por outro lado, a servidão existia em Israel precisamente porque a pobreza existia: se a pobreza não existisse, servos também não existiriam.  E se servos viviam em Israel, isto era voluntário (tipicamente por motivos de pobreza) - e não forçado. 

A Dignidade dos Servos em Israel 

As leis concernentes aos servos em Israel diziam respeito ao controle ou regularização - não idealização - de um arranjo inferior de trabalho. Israelitas se colocavam sob servidão voluntariamente - embora não por ideal. O intuito das leis de Israel era combater potenciais abusos, não institucionalizar a servidão. O Antigo Testamento punia a escravidão forçada com a morte. Uma vez que um mestre libertasse alguém de suas obrigações como servo, o antigo servo possuía então o status de “completa e livre cidadania.” [8]

O Antigo Testamento procurava prevenir servidão voluntária por dívidas. Deus deu a legislação Mosaica para evitar que os pobres entrassem, mesmo que temporariamente, em servidão voluntária e contratual. Os pobres podiam recolher as extremidades da lavoura ou pegar as uvas caídas das árvores dos seus compatriotas Israelitas (Levítico 19:9,10; 23:22; Deuteronômio 24:20,21; cp. Êxodo 23:10). Ademais, Deus ordenou que os Israelitas emprestassem liberalmente aos seus pobres compatriotas (Deuteronômio 15:7,8), e que não lhes cobrassem juros nem visassem lucros. (Êxodo 22:25; Levítico 25:36,37). E quando os pobres não pudessem pagar por animais sacrificiais, eles poderiam oferecer outros menores e mais baratos, ou até mesmo farinha (Levítico 5:7,11). E além de tudo isto, as pessoas deveriam automaticamente cancelar dívidas a cada sete anos. E quando um mestre libertasse seus servos, ele deveria generosamente pagar-lhes - sem “relutância no coração” (Deuteronômio 15:10). Resumindo: Deus não desejava que houvesse qualquer pobreza (ou servidão) em Israel (Deuteronômio 15:4). Portanto, as leis quanto as servos existiam para ajudar os pobres, não para os prejudica-los ou mantê-los escravos

Portanto, longe de relegar tratamento de servos (“escravos”) ao fim do código de leis (algo comumente feito em outros códigos do Antigo Oriente Próximo), o assunto está claramente e inteiramente exposto em Êxodo 21. Pela primeira vez no Antigo Oriente Próximo, a legislação Divina exigia que o tratamento aos servos (“escravos”)  fosse pessoal, e não de posse. Gênesis 1:26,27 afirma que todos os humanos são feitos à imagem e semelhança de Deus. Jó declara que tanto mestre quanto servo vieram do ventre de suas mães e são fundamentalmente iguais. (Jó 31:13-15). Como um estudioso escreve: “Nós temos na Bíblia os primeiros apelos na literatura mundial para que o tratamento dispensado aos servos como seres humanos em si e não apenas em interesse dos seus mestres fosse dado.” [9] 

Três Provisões Notáveis em Israel

Uma comparação simples da Lei de Israel com aquelas do resto do Antigo Oriente Próximo mostra três excepcionais diferenças. Se aqueles Sulistas que acreditavam na Bíblia houvessem seguido estas três provisões, a escravidão pré-Guerra não teria existido ou não teria sido muito problema. 

1. Leis contra Injúrias Físicas: Uma melhora clara das leis de Israel sobre quaisquer outras leis do Antigo Oriente Próximo é a libertação de servos feridos (Êxodo 21:26,27). Se um empregador (“senhor”) acidentalmente arrancasse um olho ou arrancasse um dente de seu servo/empregado homem ou mulher, ele/ela deveria ser liberto(a). Deus não permitia abusos físicos de seus servos. Se uma disciplina resultasse em morte imediata do servo, o empregador (“senhor”) deveria ser morto por assassinato (Êxodo 21:20) - diferente de outros códigos daquela época.[10] De fato, o Código de Hammurabi permitia ao mestre cortar as orelhas de servos desobedientes. (Â 282) Tipicamente nas leis do Antigo Oriente Próximo, mestres - não escravos - eram meramente financiamente compensados. A Lei Mosaica, entretanto, responsabilizava legalmente os mestres pelo tratamento dispensado aos servos - não apenas servos de outras pessoas. 

2. Leis Anti-Sequestro: Outra característica única da Lei Mosaica é sua condenação do sequestro de uma pessoa afim de vendê-la como escravo - um ato punível com a morte (Êxodo 21:16; cp. Deuteronômio 24:7). Sequestro, é claro, foi o que tornou possível e poderosa a escravidão no Sul pré-guerra.

3. Leis Anti-Returno: Diferentemente do Sul pré-guerra, Israel deveria oferecer porto
seguro à escravos fugitivos estrangeiros (Deuteronômio 23:15,16) - um contraste notável com a Lei de Escravos Fugitivos dos estados Sulistas. O Código de Hammurabi exigia a pena de morte para aqueles que ajudassem escravos fugitivos (¶16). Em outros casos menos severos - no Lipit-Ishtar (¶12), Eshunna, (¶49-50), e Hitita (¶24) - multas eram exigidas pelo abrigo de escravos fugitivos. Alguns dizem que isso é uma melhora. Bem, de certa maneira. Nestes casos “melhorados,” o escravo ainda era apenas uma propriedade; os arranjos de extradição do Antigo Oriente Próximo ainda exigiam que o escravo fosse devolvido ao seu mestre. E não apenas isto, o escravo voltaria às duras condições que o levaram à fuga em primeiro lugar. [11] Até mesmo leis melhoradas no primeiro milênio (AC) na Babilônia incluíam compensações ao mestre (ou talvez algo mais severo) por abrigar um escravo fugitivo. Todavia os escravos devolvidos eram desfigurados, incluindo orelhas decepadas e marcas. [12] Este não é o tipo de melhora para ser largamente divulgada. 

O erudito do Antigo Testamento Christopher Wright observa: “Nenhuma outra lei do Antigo Oriente Próximo foi encontrada onde o mestre é legalmente responsável pelo tratamento de seus escravos (como distinto de injúrias feitas ao escravo de outro mestre), e a de outra maneira lei universal concernente aos escravos fugitivos era de que eles devem ser mandados de volta, com penalidades severas àqueles que se recusassem a obedecer.” [13]

Se o Sul houvesse seguido estas três leis claras de Êxodo e Deuteronômio, a escravidão não teria sido problema algum. E além disso, o tratamento dos servos (“escravos”) em Israel não encontra nenhum paralelo em sua época. 

No próximo artigo, eu focarei em algumas infames passagens de “escravatura.” 


Paul Copan, Ph.D, West Palm Beach, Flórida, é professor e Pledger Family Chair de Filosofia e Ética na Universidade de Palm Beach, em Palm Beach, Flórida. Ele é autor e editor de numerosos livros, incluindo When God Goes to Starbucks, True for You, But Not for Me, That’s Just Your Interpretation, Creation Out of Nothing, e Is God a Moral Monster? Making Sense of the Old Testament God. Ele é também presidente da Evangelical Philosophical Society.


Notas

1. Harriet Beecher Stowe, A Key to Uncle Tom’s Cabin; Presenting the Facts and Documents Upon Which the Story Is Founded, Together With Corroborative Statements Verifying the Truth of the Work (Boston: John P. Jewett, 1853), I.10, 139.
2. Sam Harris, The End of Faith (New York: W.W. Norton, 2004), 18.
3. Douglas Stuart, Exodus (Nashville: B&H, 2009), 474,5.
4. De Tikva Frymer-Kenski “Anatolia and the Levant: Israel,” em A History of Ancient Near East Law, vol. 2, ed., Raymond Westbrook (Leiden: Brill, 2003).
5. Ver Gregory C. Chirichigno, Debt-Slavery in Israel and the Ancient Near East, JSOT Supplement Series 141(Sheffield: University of Sheffield Press, 1993), 351–54.
6. Ver Gordon Wenham, “Family in the Pentateuch,” in Family in the Bible, eds.Richard S. Hess and Daniel Carrol (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), 21.
7. J.A. Motyer, The Message of Exodus (Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 2005),239.
8. John I. Durham, Exodus (Waco, Tex.: Word1987), 321.
9. Muhammad A. Dandamayev, s.v. “Slavery (Old Testament),” em Anchor Bible Dictionary, vol. 6, ed. David Noel Freedman (New York: Doubleday, 1992).
10. Ver Christopher Wright, Old Testament Ethics and the People of God (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2006), 292.
11. Referências legais sobre o Antigo Oriente Próximo (ANE) são de William W. Hallo, ed., The Context of Scripture: Volume II: Monumental Inscriptions From the Biblical World (Leiden: Brill, 2003); Martha T. Roth, Law Collections From Mesopotamia and Asia Minor, 2nd ed. (Atlanta: Scholars Press, 1997). See also Elisabeth Meier Tetlow, Women, Crime, and Punishment in Ancient Law and Society: Volume 1: The Ancient Near East (New York: Continuum 2004).
12. Raymond Westbrook, ed., s.v. “Neo-Babylonian Period,” A History of Ancient Near Eastern Law, 2: 932.
13. Wright, Old Testament Ethics, 292.


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