segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Não temos "direito à felicidade" - C. S. Lewis



"Afinal de contas," disse Clare, "eles tinham direito à felicidade."

Estávamos discutindo algo que certa vez acontecera em nossa vizinhança. O Sr. A havia desertado a Sra. A e conseguira o divórcio para que pudesse se casar com a Sra. B., quem havia de igual maneira conseguido seu divórcio para casar com o Sr. A. E não havia dúvida alguma de que o Sr. A. e a Sra. B estavam realmente muito apaixonados um pelo outro. Se esse amor perdurasse, e nada de errado acontecesse com sua saúde ou sustento, eles poderiam razoavelmente esperar serem muito felizes. Estava igualmente claro que eles não estavam felizes com seus parceiros antigos. A Sra. B havia adorado seu esposo no começo. Mas então ele foi para a guerra. 

Foi como se ele tivesse perdido sua virilidade, e era sabido que ele tinha perdido seu emprego. A vida com ele não era mais o que a Sra. B havia barganhado. Pobre Sra. A., também. Ela havia perdido sua bela aparência - e toda sua vivacidade. Pode ser verdade, como alguns disseram, que ela foi consumida pelos filhos e pelo cuidado com seu marido através da longa doença que ofuscou o começo da sua vida de casada. Você não deve imaginar, por falar nisso, que o Sr A. era o tipo de homem que de maneira despreocupada joga uma esposa como o bagaço de uma laranja que já não lhe servia mais. O suicídio dela foi um choque terrível para ele. Todos nós sabíamos disso, pois assim ele nos disse. "Mas o que eu poderia fazer?" ele disse. "O homem tem o direito à felicidade. Eu tinha que agarrar minha chance quando ela veio." 

Eu fui embora pensando no conceito de "direito à felicidade." 

A princípio isso me soa tão estranho quanto ter direito à sorte. Pois eu acredito - não importando o que diferentes escolas morais possam dizer - que uma grande parte de nossa felicidade ou miséria depende de circunstâncias fora de todo controle humano. Um direito à felicidade, para mim, não faz muito mais sentido do que um direito à ter dois metros de altura, ou possuir um pai milionário, ou de ter tempo ensolarado toda vez que você quiser fazer um piquenique. 

Eu posso entender um direito como uma liberdade garantida à mim pelas leis da sociedade na qual eu vivo. Portanto, eu possuo o direito de viajar pelas estradas públicas uma vez que a sociedade me dá essa liberdade; isso é o que significa chamar as estradas de "públicas." Eu também posso entender um direito como uma reivindicação garantida à mim pelas pelas leis, e correlativa à obrigação da parte de um terceiro. Se eu possuo o direito de receber 100 reais de você, essa é outra maneira de dizer que você tem o dever de me pagar 100 reais. Se a lei permite que o Sr. A. deserte sua esposa e seduza a esposa de seu vizinho, então, por definição, o Sr. A. possui o direito legal de assim proceder, e nós não temos que trazer toda a conversa sobre "felicidade."

Mas obviamente não foi isso que a Claire quis dizer. Ela quis dizer que o direito que ela possuía não era apenas legal, mas também moral. Em outras palavras, a Claire é - ou seria se tivesse parado para pensar nisso - uma moralista clássica seguindo o estilo de Tomás de Aquuno, Grócio, Hooker e Locke. Ela acredita que atrás das leis do estado existe uma lei natural.

Eu concordo com ela, e mantenho que essa concepção é básica à toda civilização. Sem ele, as leis do estado se tornam absolutas, como em Hegel. Elas não podem ser criticadas uma vez que nos falta uma norma pela qual elas devem ser julgadas. 

O ancestral da máxima de Clare, "Eles possuem o direito à felicidade," é Augusto. Em palavras que são amadas por todos os homens civilizados, mas especialmente pelos Americanos, foi estabelecido que um dos direitos do homem é "a busca da felicidade." E agora nós chegamos ao ponto real.

Qual era o significado que os escritores daquela declaração queriam passar?

Está bastante certo o que eles não quiseram passar. Eles não quiseram dizer que o homem estava intitulado para perseguir a felicidade através de todo e qualquer meio - incluindo, digamos, assassinato, estupro, roubo, traição e fraude. Nenhuma sociedade poderia ser construída sobre tais bases.  

O significado era "perseguir a felicidade através de todos os meios legais"; isto é, através de todos os meios que a Lei da Natureza eternamente sanciona e que as leis da nação devem sancionar. 

Admitidamente isto parece a princípio reduzir a máxima à tautologia que o homem (em sua perseguição da felicidade) possuem o direito de fazer tudo aquilo que eles possuem o direito de fazer. Mas tautologias, quando enxergadas contra seu apropriado contexto histórico, não são sempre tautologias estéreis. 

A declaração é antes de tudo uma negação de todos os princípios políticos que por muito tempo governaram a Europa: Um desafio arremessado aos Impérios Russo e Austríaco, à Inglaterra antes do Ato de Reforma de 1832, à França Bourbon. Ela exige que quaisquer meios de buscar a felicidade sejam legais pois qualquer um deve ser legal para todos; que o "homem," não homens de uma determinada casta, classe, status ou religião, deveriam ser livres para usá-los. Em um século onde isto é desmentido por nação após nação, partido após partido, não a chamemos de uma tautologia estéril. 

Mas quanto à questão sobre quais meios são "legais" - sobre quais métodos são permissíveis pela Lei da Natureza ou se deveriam ser declarados legalmente permissíveis pela legislação de uma nação particular - permanece exatamente no mesmo lugar. E nesta questão eu discordo da Clare. Eu não penso que seja óbvio que as pessoas possuam o "direito à felicidade" ilimitado como ela sugere. 

Eu acredito que Clare, quando diz "felicidade," quer dizer simples e puramente "felicidade sexual." Em parte porque mulheres como Clare nunca usaram a palavra "felicidade" em qualquer outro sentido. Mas também porque eu nunca ouvi Clare falar sobre o "direito" a qualquer outra coisa. Ela era um tanto esquerdista em sua política, e teria se escandalizado se alguém defendesse as ações de um implacável milionário sobre a base de que sua felicidade consistia em ganhar dinheiro e ele estava apenas buscando sua felicidade. Ela era rigidamente abstêmia em relação ao álcool; eu nunca a ouvi desculpar um beberrão porque ele estava feliz quando bêbado. 

Clare, de fato, está fazendo o que aos meus olhos todo o mundo ocidental vem fazendo durante os últimos e estranhos quarenta anos. Quando eu era jovem, todas as pessoas progressivas estavam dizendo, "Porque todo esse puritanismo? Tratemos o sexo exatamente como tratamos todos os nossos impulsos." Eu era ingênuo o suficiente para acreditar que eles realmente queriam dizer aquilo. Eu desde então descobri que eles queriam dizer exatamente o oposto. Eles queriam dizer que o sexo deveria ser tratado como nenhum outro impulso na nossa natureza jamais havia sido tratado por pessoas civilizadas. Todos os outros, nós admitimos, devem ser freados. Obediência absoluta ao seu instinto de auto-preservação é o que nós chamamos de covardia; ao seu impulso aquisitivo, avareza. Até mesmo o sono deve ser combatido se você é um sentinela. Mas toda e qualquer falta de bondade e quebra de fé parece ser tolerada desde que o objeto desejado seja "quatro pernas nuas em uma cama."

É como ter uma moralidade onde roubar frutas é considerado errado - a menos que você roube nectarinas. 

E se você protesta contra essa visão geralmente encontra alguma tagarelice sobre a legitimidade e beleza e santidade do "sexo" e é acusado de abrigar algum desrespeitoso e vergonhoso preconceito Puritano. Eu nego a acusação. Vênus. Afrodite dourada. Eu jamais respirei uma palavra contra vós. Se eu contesto os garotos que roubam minhas nectarinas, devo eu desaprovar as nectarinas em geral? Ou até mesmo os garotos em geral? Pode ser que seja o roubo o que eu desaprovo.

A real situação é habilmente ocultada ao dizer que a questão do "direito" do Sr. A. em desertar sua esposa é um que pertence à "moralidade sexual." Roubar um pomar não é uma ofensa contra uma moralidade especial chamada "moralidade das frutas." É uma ofensa contra honestidade. A atitude do Sr. A é uma ofensa contra a boa fé (às promessas solenes), contra a gratidão (para alguém a quem ele estava profundamente endividado) e contra a humanidade comum. 

Nossos impulsos sexuais, portanto, estão sendo colocados em uma posição de privilégio absurdo. O motivo sexual é dito ser capaz de perdoar todos os tipos de comportamentos que, se tivessem qualquer outro fim como propósito, seriam condenados como impiedosos, traiçoeiros e injustos. 

Agora, embora eu não enxergue nenhuma razão legítima para conceder ao sexo este privilégio, eu penso que isto se deve à uma poderosa razão. Ela é esta.

É parte da natureza de uma poderosa paixão erótica - como distinta de um transitório arroubo de apetite, por exemplo - que ela faz promessas muito mais elevadas do que qualquer outra emoção. Sem dúvidas todos nossos desejos fazem promessas, mas não de maneira tão impressionante. Estar apaixonado envolve a quase irresistível convicção de que estaremos apaixonados para o resto de nossas vidas, e que a possessão do amado ou amada irá conferir, não apenas êxtases frequentes, mas uma estabelecida, frutífera, profundamente enraizada e eterna felicidade. Portanto todas as coisas parecem estar em jogo. Se perdermos essa chance teremos vivido em vão. O próprio pensamento de tal acontecimento nos lança nas mais insondáveis profundidades de auto-piedade. 

Infelizmente, frequentemente descobrimos que essas promessas são falsas. Todo adulto experimentado sabe que esse é um fato quando o assunto são todas as paixões eróticas (exceto aquela que ele está sentindo no momento). Nós relevamos as pretensões sem fim de nossos amigos deveras facilmente. Sabemos que certas coisas às vezes duram - e às vezes não. E quando elas de fato duram, isso não se deu porque eles prometeram fazê-lo no início. Quando duas pessoas alcançam felicidade duradoura, isso não se dá simplesmente porque eles são grandes amantes mas também porque - eu devo colocar de maneira crua  - são pessoas boas; controladas, fiéis, racionais e mutuamente adaptáveis. 

Se estabelecemos um "direito à felicidade (sexual)" que suplanta todas as regras ordinárias de comportamento, não o fazemos pelo que nossa paixão mostra na experiência, mas sim pelo que ela professa enquanto estamos no seu ápice. Portanto, enquanto o mal comportamento é real e cria misérias e degradação, a felicidade que era o objeto do comportamento se mostra vez após vez ilusória. Todas as pessoas (exceto Sr. A. e Sra. B.) sabem que o Sr. A. em um ano ou menos pode ter a mesma razão para desertar sua nova esposa como teve para desertar a antiga. Ele irá sentir novamente que todas as coisas estão em jogo. Ele se enxergará novamente como um grande amante, e sua auto-piedade irá excluir toda a piedade por sua mulher. 

Dois pontos permanecem.

Um é este. Uma sociedade na qual a infidelidade conjugal é tolerada deve sempre e por necessidade se tornar a longo prazo uma sociedade adversa à mulher. Mulheres, a despeito do que algumas músicas machistas e sátiras possam dizer são mais naturalmente monogâmicas do que os homens; é uma necessidade biológica. Onde a promiscuidade prevalece elas sempre serão com mais frequência as vítimas do que as culpadas. Ademais, felicidade doméstica é mais necessária a elas do que a nós. E a qualidade pela qual elas mais facilmente atraem e mantém um homem, sua beleza, diminui ano após ano após terem atingido a maturidade, mas isto não acontece com aquelas qualidades da personalidade - as mulheres não dão a mínima realmente para nossa aparência - pelas quais atraímos e mantemos as mulheres. Dessa maneira em uma implacável guerra de promiscuidade as mulheres possuem uma desvantagem dupla. Elas põem mais em jogo e têm menos chances de ganhar. Eu não tenho simpatia por moralistas que franzem suas sobrancelhas à cada vez maior crueza da provocatividade feminina. Estes sinais de desesperada competição me enchem de compaixão. 

Em segundo lugar, embora o "direito à felicidade" seja principalmente invocado em conexão ao impulso sexual, me parece impossível que o assunto devesse permanecer apenas aqui. O princípio fatal, uma vez permitido neste campo, deve cedo ou tarde infiltrar-se em todas as áreas de nossas vidas. Nós então avançaremos para um estado de sociedade onde não apenas cada homem mas também cada impulso em cada homem reivindica carte blanche*. E então, embora nossas habilidades tecnológicas possam nos ajudar a sobreviver um pouco mais, nossa civilização terá morrido no coração, e irá ser - ninguém nem mesmo ousa dizer "infelizmente" - varrida para sempre. 


*Carte Blanche - Expressão Francesa que possui o significado literal de "carta branca" tendo como definição mais próxima a de "possuir total e completa autoridade e liberdade para agir conforme sua vontade." 

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